Tuesday, January 31, 2023

ODE ÀS MENTIRINHAS

 


Mais do que social ou político-

e isto não critico-

o homem é, por natureza, um mentiroso.

Mentir, para o homem, é tão natural

quanto respirar,

ir no banheiro ou amar.

E a mentira faz mais falta que o ar.

Há quem minta dizendo que diz a verdade

assim como quem, de tanto mentir,

faz da mentira sua realidade.

O fato é que mentir,

acima de todas as coisas,

é uma qualidade humana.

Dizer sempre a verdade é uma virtude sobre-humana.

Há quem pensa ser verdadeiro,

mas, se engana.

A arte de mentir na pessoa humana é uma segunda natureza

tanto que o sumo do mentir, sua maior beleza

é mentir para si mesmo

e acreditar

que só diz a verdade.

Andei tendo uma queda neste fosso-

digo com naturalidade-

e, hoje, por ironia

projeto como meta,

uma coisa de esteta,

mentir de forma sofisticada ,

elaborada,

uma meia verdade

que soe com imensa naturalidade 

e apenas uma vez por dia!

Ilustração: Chippu.

Uma poesia de Verónica Vicente

 


«Eso que queda fuera es el silencio necesario para escuchar y entender entre tanto barullo»

Verónica Vicente

 

“Isto que fica fora é o silêncio necessário para escutar e entender entre tanto barulho”

 Para que todo aquele sobre o qual me sedimento

se concentre

                                 articule uma linguagem

                                                                            me refira

é preciso apre (e)nder a elipse do silêncio

a órbita calada das coisas presentes essa massa

sobrante dos moldes.

 

Tão vital para a melodia luminosa

as cordas a pulsar

como o emudecimento combinado

do resto da orquestra.

Ilustração: Recreio.

Salada Pronta


Tenho que aceitar

o que me dizem.

Sem reclamar

quando me roubam o amanhã.

Ser rebelde é para quem pode.

Meus irmãos, obedeçam às ordens!

 

Ser da América do Sul

é se acostumar com o eito.

Não tem jeito!
Não tem jeito.

Você tem direito a futebol e

carnaval.

Se quiser mais terá deboche

e é bom ficar calado

para não acabar cancelado!

 

Os civilizados não sabem

Que ser selvagem é a salvação.

Pego na tua mão,

Beijo tua boca

Com uma paixão louca

Sem temer mais nada,

Sem temer o amanhã

Que não verei.

 

Sou da América do Sul.

Do deboche, da banana

e de desorganização entendo.

Como um bom animal

Vou vivendo

Como me deixam.

 

Não tenho mais como ter timidez.

Já sei que nunca vou ter vez.

Monday, January 30, 2023

Uma poesia de Cintio Vitier

DONDE LA BRISA

Cintio Vitier

Porque tal es el rostro del fracaso

que el espejo devuelve ciegamente

aun antes de llegar, dulce y demente,

el último rescoldo del ocaso:

 

frente de la obsesión y del rechazo,

ojos que sólo vieron lo renuente,

nariz que impide el aire, boca ausente

en su amargo sabor: extraño vaso

 

a punto de volverse puro hueso:

porque tal es el fin, tal la ceniza

cuyo suave huracán todo lo arrasa,

 

dejar de letras quise un ramo grueso

que ardiera un poco más donde la brisa

orea la aridez, sonríe y pasa.

ONDE A BRISA

Porque tal é o rosto do fracasso

Que o espelho devolve cegamente

Ainda antes de chegar, doce e demente,

O último resíduo do ocaso:

Frente à obsessão e ao rechaço

Olhos que só viram o relutante

Nariz que impede o ar, boca ausente

Em seu amargo sabor, estranho vaso

 

A ponto de volver-se puro osso:

Porque tal é o fim, tal a cinza

Cujo o suave furacão tudo o arrasa

 

Deixar de letras quis um ramo grosso

Que arde um pouco mais onde a brisa

Refresca a aridez, sorri e passa.

Ilustração: Depositpfhotos.

Sunday, January 29, 2023

O Eu e a Estrada


O começo é a estrada.

A estrada é o fim. 

A estrada é a estrada

com começo e fim.

E não há fim, 

nem começo

e nem existe estrada

sem eu. 

E existe começo, fim

e estrada

antes e além de mim. 

A estrada, igual ao mundo, 

se estende até o infinito

sem conhecimento 

das emoções dos aflitos. 

Ilustração: Dramstime. 

 

Uma poesia de Chloe Honum

 


DEVONPORT

Chloe Honum

The man has chosen

that he wants his ashes scattered

from the end of the pier

 

where he used to fish with his buddies.

They’d sit on overturned paint buckets.

Sometimes the waves gusted up

 

and the hems of his pants got wet and salty.

He liked the gulls that stood on the railing,

all puffed up with sky.

 

Having made the decision,

he walks at dusk to the end of the pier

and looks out at the sea.

 

As he turns away, he sometimes gives

a small, happy nod, like a man

thinking yes, I will buy this house.

DEVONPORT

O homem escolheu

que ele quer suas cinzas espalhadas

no final do cais

 

onde ele costumava pescar com seus amigos.

Eles se sentavam nos baldes de tinta virados.

Às vezes as ondas os cobriam

 

e as bainhas de suas calças ficavam molhadas e salgadas.

Ele gostava das gaivotas que pousavam no parapeito,

todo cheio como o céu.

 

Tendo tomado a decisão,

ele caminhou ao entardecer até o final do cais

e olhou para o mar.

 

Quando ele se afasta, ele às vezes dá

um pequeno e feliz aceno de cabeça, como um homem

pensando sim, vou comprar esta casa.

Monday, January 23, 2023

APOCALYPSE

 


Sereias, dragões,

Gnomos, elfos e duendes.
Seres fantásticos.
Mais fantásticos do que a vida
                    vão chegando:
Olha o cavalo de São Jorge!
Olha o Xangô, Oxum, Yansã, Yemanjá, o caboclo sete flechas.
Saci-Pererê passeia de perna mecânica.
Uma bruxa dança rock com em sua vassoura musical.
Drácula, cercado de morcegos, fala de amor
Enquanto um lobisomem o acompanha ao sintetizador.
Marx, meu filho, tu que acreditavas tanto
Que fazes encostado neste canto?
Lenin, tu que morrestes tentando,
                  que fazes agarrado ao Rockfeller?
Hitler, mamadeira na mão, alimenta judeus pequenininhos,
                   naturalmente, com leite Ninho.
Einstein, língua de fora, ri da relatividade do Grand Finale.
Simon Bolivar contrata Napoleão para unificar a América Latina,
Lucrécia Borgia serve um jantar sem estricnina.
Alan Kardec escuta de João XXIII uma conferência sobre o apocalipse
Ao mesmo tempo, que De Gaulle leva o Brasil a sério,
Pois, Juscelino já pensa em construir um novo universo.
Chaplin, passinhos miúdos, faz lirismo do fim dos tempos
Que Kafka torna um mistério.
Nietzsche procura sinais de Zaratustra.
Freud e Reich discutem sexo
Enquanto Rousseau ainda prega profético
Igualdade, Liberdade, Fraternidade- para um Platão
                     ensimesmado com os reflexos
                     de sua gruta.
Descartes tenta simplificar o final complexo
Diante de um Kant atônito perante
                   a queda das estrelas e das consciências.
Indiferente Tomás de Aquino cristianiza
                   o livro vermelho de Mao
Que, olhos arregalados, não entende a China.
Kennedy e Keynes debatem problemas de orçamento
                     sob o olhar complacente 
                     de um Bachelard desatento.
Schopenhauer vê o desenlace com pessimismo
Hegel com descrédito e Voltaire sarcástico
                     zomba de Galileu, Newton e Leplace
                     equacionando o final.
Todos estão aqui
(Lembro-me de ter visto Smith, Locke, Bacon, Mill, Pascal, Hobbes, Espinosa, Comte, Durkheim, Weber, todos, todos).
Apreciando o fim Maquiavel queixa-se de não ser nada maquiavélico
E Wagner queixa-se a Chopin, Beethoven, Mozart e Bach
                      de que não seja devidamente musicado.
Van Gogh, Rubens, Rembrandt, Renoir, Gauguin, Cezanne, Da Vinci, Velasquéz, Góia e Dürer, Michelangelo, Degas, Rafael, Chagal e Picasso comentam as cores
Ao passo que Goethe, Camões, Valery, Milton, Virgilio, Homero, Drummond,
                       Neruda e Castro Alves nelas se inspiram.
Só Dante e Shakespeare descrevem o cessar do tempo
Que Aleijadinho procura preservar em pedra-sabão.
De repente pula, em meio à claridade impressionista,
Tendo por fundo um cartaz de Minister,
Entre cavalos e caracóis alados,
                        a figura frágil e trêfega de Rita Lee
que, sob os aplausos da Guarda Real do Xá
Tenta segurar o tapete voador de Aladim,
                        o destruidor do muro de Berlim.
Descem pela Avenida Marquês de Sapucaí
O aiatolá Khomeini, com seus reféns, comandando
A Mangueira,
A Portela,
Salgueiro,
Vila Isabel,
Mocidade Independente,
Império Serrano,
Beija-Flor, todas, todas.
Na Avenida Brasil
São reforçadas pela Vai-Vai, a Camisa Verde,
 que vem com todas, todas, sob a batuta
de Sadat de óculos Ray-ban.
Descem pela Rio-Bahia
numa folia
e pegam os trios elétricos,                                    
os Filhos de Ghandi.
No Recife
Pitombeiras, Bloco das Flores, Vassourinhas, todos, todos.
Os maracatus do Ceará
Az de Ouro,
Az de Paus,
Leão Coroado, a Prova de Fogo.
Em São Luiz, bumbas-meu-bois;
Em Belém
O Rancho Não Posso me Amofiná,
Quem São Eles,
arrasta todos, todos
Que vão indo, indo, indo
se embrenhando por uma Transamazônica surrealista
buscar em Porto Velho
a Pobres do Caiari,
a Diplomatas,
a Quilometro Um,
a Banda do Vai Quem Quer
para terminarem
a quarta-feira de cinzas do mundo
           no encontro das águas.
O mágico de Oz, por desencargo, ressuscita múmias egípcias. 
Oráculos e esfinges em Gradientes, Garrards e Polyvoxs sonoros
            predizem o próximo desastre
            (fundo musical na voz de Bethania)
Chove no Ceará.
Faz frio em Terezina.
Enfeita-se o Saara de rosas.
Há neve na Amazônia, selva na Groelândia.
O Brasil torna-se uma ilha, o Japão um continente.
Os índios estão salvos e agradecem ao presidente.
Em Harvard, Salvador Dali e Idi Amin dão cursos de lógica.
Gabriel Garcia Marquez consulta Nostradamus
Sobre a possibilidade de dar certo
Certos planos para a contenção inflacionária.
Cartola ensina samba ao criado-mudo.
Elis finge que toma cocaína,
por ser gente fina,
e inventaram, por fim, a solução da questão agrária.
A Estátua da Liberdade aprendeu a andar.
A Torre Eifel é um Zepellin.
O Cristo sentado no Pão de Açúcar come amendoim.
A Torre de Piza está reta.
A Vênus de Milo recuperou os braços.
Implantaram a democracia na Rússia,
O socialismo nos Estados Unidos,
No Vaticano, um campo de nudismo,
E, no Brasil, um partido social.
E há algo de errado
com um fim onde ninguém chora.
Talvez um palhaço preocupado com a hora;
Tantas Colombinas, Pierrôs e Arlequins
                     ovacionando  Carlos Gardel
       descontente com a imensa batalha de papel
                     entre Inglaterra e Argentina.
Quem sabe se não é a Gioconda
                     de cara amarrada
porque Fidel Castro fez a barba
para ouvir Chico Buarque
que aprendeu com Vinícius de Moraes
                      a arte de não beber mais
ou os Beatles, novamente juntos,
                      percorrendo um céu de pop art
                      avisando que não acabou o sonho.
Explodem fogos de artifícios.
Multidões cantam, riem, dançam, flores nas mãos.
Há alguém que toda violino no telhado.                 Um piano destila poesias em notas,
Um saxofone geme,
Um clarinete toca,
Soam clarins.
Ouve-se a valsa da despedida.
São os anjos que vem vindo!
São os anjos!
Descerram-se as cortinas do céu.
Milhares de anjos barrocos
                     rodeando um carro celeste
                     num todo de Tiepolo. 
Mas...oh! Surpresa...no carro..
Vós, ó Rei Momo!
Soam trombetas celestes.
Holofotes,
Fosfóros Fiat Lux.
Lâmpadas estroboscópicas giram,
Papel picado,
Confetes,
Serpentinas, chuvas de dólares, de francos, de marcos, iens, liras.
Os discos!
Os discos voadores pousam, em perfeita sintonia,
                        em cores da Kodak,
Em todas as esquinas há coca-cola grátis,
Antarctica, Skol, Brahma.
A Máfia, o Esquadrão da Morte, as brigadas vermelhas, os palestinos
                        e os montoneros fazem passeatas pela não-violência.
Em Angra dos Reis há uma usina nuclear em obsolescência,.
Em Belo Horizonte se elege entre festas mil
O gay mais bonito do Brasil-
Promoção da Tradição, Família e Propriedade.
E um militar desconsolado vê seu quartel desativado
                        não há mais o que proteger              
E há ainda uma família que gosta de ié-ié-ié
E Daniel despede-se da Jari,
                        debaixo de palmas
                        de colonos e trabalhadores rurais.
A General Motors, a General Eletric, a Esso, a Shell, a Texaco, a IBM, a ITT, a Hanna,
A US Steel, as cinco irmãs do alimento, todas, todas, todas não querem lucros mais.
(E pedem desculpas ao Terceiro Mundo).
E o Chase Manhattan se propõe a financiar a reconstrução universal.
E gregos e troianos, medos e persas, romanos e cartagineses, americanos e vietnamitas, russos e afegãs, americanos e coreanos, americanos e japoneses, alemães e franceses, argentinos e ingleses, brasileiros e argentinos, russos e chineses, brancos, pretos, vermelhos, amarelos, todos, todos, todos se abraçam, se beija, e se amam.
O mar pega fogo.                                                         O espaço explode.
O universo se extingue.
E, antes do plim, plim final,
ainda se consegue ouvir
de um locutor da Globo a derradeira lição de moral!

(Do livro "Apocalypse", Editora Zanzalás, São Paulo, 1982, agora disponível em e-book na Editora Per Se (http://www.perse.com.br).