Friday, April 04, 2025

Cada um dá o que tem

 


O poeta é um bobo

que só fala de amor, de flores, de saudades.

É verdade.

Sou um obscurantista, o que muito me envaidece.

Brilhante na minha escuridão, 

às vezes, me deixo levar pelo momento

e me perco num lamento,

me encontro numa prece.

E, no buraco negro onde vivo enfiado,

serei sempre culpado

de falar de amor, de vida, de poesia-

coisas de uma magia, 

que muitos desconhecem. 

Cada um, no entanto, canta 

o que tem dentro de si. 

E sobre o que sua má língua diz de mim

só merece meu silêncio 

e, com indulgência e compreensão, 

te perdoo pedindo desculpas, 

o que me faz sorrir

é ser tão bom de coração

(só não abuse não!).

Ilustração: Facebook.

Thursday, April 03, 2025

Um poema de Joseph Millar

 

 


JOB

Joseph Millar

I’ve just come from walking to and fro
in the earth, Satan tells God
before they make the wager
standing for centuries
as metaphor of man’s existence— 
trapped on the wheel like an insect
under a microscope:
his disastrous ecology,
his ravaged immune system,
even his broken-veined, wine-flushed face
looking back from the rearview
and parked alone by the river.
He should have been born
with fins, he thinks
as the swans arch and preen
and attack one another
though everyone says they mate for life
and the afternoon wind
raises welts of sunlight
over the torqued and rippling surface
and the beautiful ravenous fish.

OCUPAÇÃO

Eu justo vim de uma caminhada de um lado para o outro

na terra, Satanás diz a Deus

antes que eles façam a aposta

permanecendo por séculos

como metáfora da existência do homem-

preso na roda como um inseto

sob um microscópio:

sua desastrosa ecologia,

seu devastado sistema imunológico,

até mesmo seu rosto de veias rompidas e corado de vinho na face

olhando para trás pelo retrovisor

estacionando sozinho perto do rio.

Ele deveria ter nascido

com nadadeiras, ele pensa

enquanto os cisnes se arqueiam e se alisam

e atacam uns aos outros

embora cada um diga que eles acasalam para a vida

e o vento da tarde

levanta vergões de luz solar

sobre a torcida e ondulada superfície

e os belos e vorazes peixes.

Ilustração: dnotícias.pt.

O Mar de Claribel Alegria

 


MAR

Claribel Alegria

Aquí estoy otra vez sobre tu arena
mar de pupilas hondas y sombrías
Regreso bajo el luto de mis días
a buscar la raíz de mi condena.

Un temblor de amargura me encadena
al rimo eterno de tus olas frías.
En el insomnio gris de tus bahías
oigo latir el pulso de mi pena.

Mar de voces profundas y nubladas
abraza ya mis lágrimas gastadas,
desflécame en tu angustia serpentina.

Mar de labios ausentes en la bruma,
lamento alzado en túmulos de espuma,
unge mi voz con tu embriaguez salina.

MAR

Aqui, outra vez, sobre tua areia estou

mar de pupilas profundas e escuras

Regresso sob o luto dos meus dias

a buscar a raiz do condenado que sou.

 

Um tremor de amargura me algema

ao ritmo eterno das tuas ondas frias.

Na insônia cinzenta das tuas baías

Ouço o pulsar da minha lástima.

 

Mar de vozes profundas e nubladas

Abraça já minhas lágrimas gastadas,

desfie-me em tua angústia serpentina.

 

Mar de lábios ausentes na bruma,

lamento erguido em montes de espuma,

unge minha voz com tua embriaguez salina.

Ilustração: Blog do Pascal.

Wednesday, April 02, 2025

Ainda Assim Acredito


Uma alegria imensa foi a sensação 

quando li, tomado pela emoção, 

as palavras que você me escreveu:

"Não esqueça que você é o amor da minha vida".

É uma prova de que nunca me esqueceu

E acelerou freneticamente as batidas 

do meu pobre e velho coração. 

Pena que a razão o olhar me abriu:

Era meu desejo alimentando a ilusão,

pois era primeiro de abril!!!

Ilustração: Catequese. 

Tuesday, April 01, 2025

Uma poesia de Tente Garrido

 


CONVERSIÓN

Tente Garrido

Yo también me escondo
entre la gente,
empaño el cristal transparente del mostrador
que separa mi voz
de un receptor impertinente.
Yo también he decidido
ser culpable sin remordimiento,
consecuente con mis delitos,
aceptar y relativizar
mis pequeños fascismos
de cada día.
Poco tenaz, poco elocuente.
Yo también cuento monedas,
barro pelusas debajo del sofá,
piso con las suelas sucias.
Me olvido de reponer el papel higiénico,
niego obviedades y me rasco
entre los dedos de los pies.
Yo también lloro cuando me acuesto
-a veces no estoy solo-
y me como los mocos cuando
nadie me ve.

CONVERSÃO

Eu também me escondo

entre as pessoas,

embaço o vidro transparente do balcão

que separa minha voz

de um receptor impertinente.

Eu também decidi

ser culpado sem remorso,

consequente com meus crimes,

aceitar e relativizar

meus pequenos fascismos

cada dia.

Pouco tenaz, pouco eloquente.

Eu também conto moedas,

varro os fiapos para debaixo do sofá,

piso o chão com solas sujas.

Esqueço de repor o papel higiênico,

nego coisas óbvias e me coço

entre os dedos dos pés.

Eu também choro quando vou dormir

-às vezes não estou só-

e eu como melecas quando

ninguém me vê.

Ilustração: IEAD. 

É Tudo Mentira, Meu Amor

 


É mentira, amor,

que tenha feito poesia para outra, 

qualquer outra.

Na poesia que fiz 

os olhos eram de céu e mar?

A poesia, meu amor, é traiçoeira,

exige rimas, arrodeios, figuras, 

expressões passageiras, 

e teus olhos, certas horas,  parecem 

ser de céu ou mar.

É preciso que saibas

que, mesmo em outras, 

muitas vezes, percebo tua beleza

e, talvez, agindo contra a natureza

outra tenha festejado. 

Coisas tolas, escrevo e escrevi, 

mas, tudo mentira, errei e tenho errado, 

porque só faço versos de verdade 

quando penso em ti. 

Ilustração: Flickr.