Tuesday, August 30, 2022

LXXIII


Cada um de nós

é resultado de uma teia

que nem sabemos quem teceu.

Cada um de nós 

é um mistério

que não se sabe explicar.

Um nó

fruto de toda uma rede

que, pelo tempo, se estendeu.

Uma sombra única

de uma história incerta

e sem roteiro,

faíscas fugazes de um candeeiro

que não se sabe quem acendeu

e, como todas as luzes,

um dia 

destinada a se apagar

por falta de pavio, fogo ou ar. 

Uma poesia de Sarrión

 


CARPE DIEM

Antonio Martínez Sarrión

Qué dispendioso pulular de nombres,

de ateridas esperas mientras la madrugada

difuminaba taxis en una sucia niebla.

Qué lástima de tiempo barajando

naipes ya de textura ala de mosca

cuando el sol meridiano, más de un punto granado,

no sabe de demoras, admite alistamientos

sin requisito alguno,

por ahogado de sombra que llegue el aspirante,

para entregar a cambio manos como paneles,

ríos de campanillas, zureos de palomas,

terco mundo presente,

que fulgura y se esfuma tan tranquilo,

negándose de plano -y con cuánto derecho-

al deshonesto oficio de pañuelo de lágrimas.

CURTA O MOMENTO

Que dispendioso borbulhar de nomes

de entorpecidas esperas enquanto a madrugada

borrava táxis numa névoa suja.

Que perda de tempo embaralhando

cartas de baralho já de textura de asa de mosca

quando o sol meridiano, mais de um ponto romã,

não sabe de atrasos, admite alistamento,

sem qualquer requisito,

não importa quão afogado na sombra chegue o aspirante,

para dar em troca mãos como painéis,

rios de campainhas, arrulhos de pombos,

obstinado mundo presente,

que brilha e se esfumaça tão tranquilo,

negando-se de plano- e com quanto direito

ao desonesto ofício de lenço de lágrimas.

Ilustração: Mensagens de Amor.

Uma poesia de Catherine Barnett

 


2020

Catherine Barnett

Up late scrolling

for distraction, love, hope,

I discovered skew dice.

 

In the promotional video

you see only a mathematician’s hands,

like the hands of god,

 

picking up the dice one at a time,

turning them over and over

before returning them

 

to the hard wood table,

where each lands with something

between a whoosh and silence,

 

face up, face down,

some faces lying on their side,

as at other archaeological sites.

 

I bought a set of the patented dice,

each with its own logic and truth

and aleatory uncertainty-

 

at home alone I rolled them

across my dining table

to pass the time,

 

and time with its own logic

passed. Dear god.

I haven’t been touched in so long.

2020

Rolando até tarde

por distração, amor, esperança,

Eu descobri os dados tortos.

 

No vídeo promocional

você vê só as mãos de um matemático,

como as mãos de Deus,

 

pegando os dados um de cada vez,

virando-os de novo e de novo

antes de devolvê-los

 

para a dura mesa de madeira,

onde cada um pousa com alguma coisa

entre um assobio e o silêncio,

 

vira para cima, vira para baixo,

alguns rostos deitados de lado,

como em outros sítios arqueológicos.

 

Comprei um conjunto de dados patenteados,

cada um com sua própria lógica e verdade

e aleatória incerteza-

 

em casa sozinho eu os rolei

por sobre minha mesa de jantar

para passar o tempo,

 

e tempo com sua própria lógica

passou. Querido Deus.

Eu não tenho sido tocada dentro faz muito tempo.

Ilustração: iStock.

Novamente Paul Eluard

 


DÉFENSE DE SAVOIR
Paul Eluard

IX. J'en ai pris...

J'en ai pris un peu trop à mon aise
J'ai soumis des fantômes aux règles d'execption
Sans savoir que je devais les reconnaître tous
En toi qui disparaît pour toujours reparaître

DEFESA DO SABER

IX-Eu os prendi....

Eu os prendi acaso com demasiada facilidade

Eu submeti os fantasmas às regras de exceção

Sem saber que eu deveria reconhecer a todos

Em ti que desaparece para sempre reaparecer.

Ilustração: Capricho.

Monday, August 29, 2022

Outra poesia de Aurora Luque

 


DEFINICIÓN DEL ABRAZO

 Aurora Luque

-No temerás los odres destapados de Eolo.

Los vientos se entrecruzan tras los mares,

viajan en las borrascas, pulsan olas turgentes,

despeinan deportistas y palmeras.

Los abrazos son vientos concentrados y sabios

-mi noto tú mi céfiro mi bóreas.

No temerás las calles arrasadas,

los bosques descuajados, los altos oleajes.

No temerás los odres destapados de Eolo.

DEFINIÇÃO DE ABRAÇO

Não temerás os odres descobertos de Éolo.

Os ventos cruzam por trás dos mares,

viajam nas tempestades, pulsam nas ondas encrespadas,

desgrenham atletas e palmeiras.

Os abraços são ventos concentrados e sábios

-minha nota tu és meu zéfiro minha boreas.

Não temerás as ruas arrasadas,

as florestas desenraizadas, as altas ondas.

Não temerás os odres descobertos de Éolo.

Ilustração: Mitologia Grega.

Saturday, August 27, 2022

LXXXII

 


Há sempre um amanhã,

não importa a negrura da noite,

ser o dia enevoado ou não, 

se estamos bem 

ou nos treme o coração.

É só olhar para a frente-

nossa única questão real-

pois, todo o resto é banal.

Nós, estamos aqui, 

sempre estaremos,

com consciência ou sem ela,

podendo, ou não, olhar pela janela.

É inevitável 

o fluir do tempo

e voltarmos ao nosso estado natural.

Não há nada a temer:

aproveita o teu tempo,

pó de estrelas,

vive o que puder viver!

(De "Cem Poemas em Cem Dias", Maringá, Editora Viseu, 2021).

Ilustração: Portal Deviante. 

E, de volta, Paul Eluard

 


DU FOND DE L’ABIME  

Paul Eluard

 

VII. Nous sommes à nous deux...

 

Nous sommes à nous deux la première nuée

Dans l’étendue absurde du bonheur cruel

Nous sommes la fraîcheur future

La première nuit de repos

Qui s’ouvrira sur un visage et sur des yeux nouveaux et purs

Nul ne pourra les ignorer

 DO FUNDO DO ABISMO

VII. Somos nós dois...

 

Estamos juntos na primeira nuvem

Na extensão absurda da cruel felicidade

Nós somos o frescor do futuro

A primeira noite de repouso

Que se abrirá sobre a visão de um rosto e olhos novos e puros

Ninguém pode os ignorar

Ilustração: Mensagens de Amor.

E ainda a poesia de Eugenio Montale

 


HO SPARSO DI BECCHIME IL DAVANZALE

Eugenio Montale

Ho sparso di becchime il davanzale

per il concerto di domani all'alba.

Ho spento il lume e ho atteso il sonno.

E sulla passerella già comincia

la sfilata dei morti grandi e piccoli

che ho conosciuto in vita. Arduo distinguere

tra chi vorrei e non vorrei che fosse

tornato tra noi. Là dove stanno

sembrano inalterabili per un di più

di sublimata corruzione. Abbiamo

fatto del nostro meglio per peggiorare il mondo

ESPALHEI POR TODO O PEITORIL DA JANELA O ALPISTE

Espalhei por todo o peitoril da janela o alpiste

para o concerto de amanhã ao amanhecer.

Apaguei a lâmpada e esperei pelo sono.

E sobre a passarela já começa

o desfile dos mortos grandes e pequenos

que conheci na vida. Difícil de distinguir

entre quem gostaria ou não gostaria que

voltasse entre nós. Lá onde estão

eles parecem inalteráveis ​​por um algo mais

de sublimada corrupção sublimada. Temos

feito o nosso melhor para piorar o mundo

Ilustração: Tudo Ela.

Ainda Javier Garcia Rodríguez


 

INSTRUCCIONES PARA

ABRIR ESTE LIBRO

Javier García Rodríguez

Para abrir este libro

hace falta la llave de la lluvia:

cógela con las manos y no temas

si te mojas con agua o con palabras.

 

Hace falta la clave del enigma,

el código secreto, el número

que abre de par en par

–de dos en dos se hacen mejor las cosas–

la caja fuerte donde está el misterio.

 

Hace falta también la contraseña

que ablanda el disco duro,

que permite el acceso

a la escondida cueva del tesoro.

 

Hace falta la frase misteriosa

que separa las aguas de los mares,

conocer el oculto mecanismo

que cierra las pirámides.

 

Para abrir este libro

hacen falta las manos y el deseo

de querer que sea nuevo el viejo mundo.

 

 

Para abrir este livro

faz falta a chave da chuva:

colhê-la com as mãos e não temer

se te molhas com água ou com as palavras.

 

Faz falta a chave do enigma

o código secreto, o número

que abre de par em par

- de dois e, dois se fazem melhor as coisas-

A caixa forte onde está o mistério.

 

Faz falta também a contrasenha

que abranda o disco rígido,

que permite o acesso

 à escondida caverna do tesouro.

 

Faz falta a frase misteriosa

que separa as águas dos mares,

conhecer o mecanismo oculto

que fecha as pirâmides.

 

Para abrir este livro

Fazem falta as mãos e o desejo

de querer que seja novo o velho.

Ilustração: Wine.

Thursday, August 25, 2022

Uma poesia de Rafael del Castillo Matamoros


 SEPULTUREROS

Rafael del Castillo Matamoros

                                                    A Janis Joplin

Enterramos botones

piedrecillas

pedazos de papel

Biblias rotas

naufragios

 

Vamos a campo abierto

con todos nuestros muertos en el pecho

con todos nuestros muertos enterrados en el pecho

un niño acuclillado contra un árbol

sepulta cosas muertas en su corazón

mientras el viento le acaricia enternecido la cabeza

 

Alguien

bajo el silencio

respira hondo

nos mira

y entona una canción:

 

Todos gritamos desde el fondo de su pecho

COVEIROS

A Janis Joplin

Enterramos botões

pedrinhas

pedaços de papel

bíblias rôtas

naufrágios

 

Vamos para o campo aberto

com todos os nossos mortos no peito

com todos os nossos mortos enterrados no peito

um menino agachado contra uma árvore

sepulta coisas mortas no seu coração

enquanto o vento acaricia enternecido sua cabeça

 

Alguém

sob o silêncio

respira fundo

nos olha

e canta uma canção:

 

Todos nós gritamos desd’ o fundo do seu peito.

Ilustração: Catequese Católica.

Outra vez Eugenio Montale

 


SPESSO IL MALE DI VIVERE HO INCONTRATO

Eugenio Montale

Spesso il male di vivere ho incontrato:

era il rivo strozzato che gorgoglia,

era l'incartocciarsi della foglia

riarsa, era il cavallo stramazzato.


Bene non seppi, fuori del prodigio

che schiude la divina Indifferenza:

era la statua nella sonnolenza

del meriggio, e la nuvola, e il falco alto levato.

MUITAS VEZES O MAL DE VIVER ENCONTREI

Muitas vezes encontrei o mal de viver:

era o riacho estrangulado que borbulha,

era o embrulho da folha

ressecada, era o cavalo caído.

 

Bem, eu não sabia, fora do prodígio

que abre a janela da divina indiferença:

era a estátua em sonolência

do meio-dia, e a nuvem, e o falcão ao alto elevado.

Ilustração: Portal RCC News.

Outra poesia Diego Medrano

 


CARGAR ALMAS

Diego Medrano

Le hubiera cedido mi curato pero

no quiero cargar almas.

Francoise Villon

El muerto quiere ser maniquí por algún tiempo

el poeta es seducido por la delincuencia

la crueldad rejuvenece —advertía Rimbaud—

y algunas viudas se aferran al pasado

como lapas sobre la carretera oscura.

No obstante, la gloria más temida y sacra

viene perfilada por grandes manos curiosas

y la lengua, resistente, por blanda y fea;

los dientes pequeños son imposibles de traspasar.

Tanta copa sin compañía sólo puede llevar

al tobogán de las gemas sin cofre ni dueño:

nuestros cuerpos, firmes bajo secreto de capa

mojada de mentiras: Tú y yo, apenas fuel

de una maquinaria perversa que la vida

debiera haber engrasado arrebatada.

CARREGAR ALMAS

Eu teria dado a ele minha paróquia, mas

Não quero carregar almas.

Françoise Villon

O morto quer ser manequim por algum tempo

o poeta é seduzido pelo crime

a crueldade rejuvenesce -advertiu Rimbaud-

e algumas viúvas se apegam ao passado

como cracas na estrada escura.

No entanto, a glória mais temida e sagrada

vem delineada por grandes mãos curiosas

e a língua, resistente, porque é macia e feia;

dentes pequenos são impossíveis de perfurar.

Tantos copos sem companhia só podem carregar

ao deslizamento das gemas sem baú nem dono:

nossos corpos, firmes sob o manto secreto

molhado de mentiras: você e eu, mal combustível

de uma maquinaria perversa que a vida

deveria ter untado arrebatada.

Ilustração: https://lumorangon.wordpress.com/.

Wednesday, August 24, 2022

DESPEDIDA

 


Eu não te quero! Não te quero!

Ela repetiu como letra de bolero

e, dançando, com um sorriso partiu.

Ilustração: Mensagens de Amor. 

SORRINDO E CANTANDO EM QUALQUER MÊS

 


( Como se fosse um Fausto Nilo)

Quando fevereiro passar

Não pense que será diferente.

É só olhar o teu olhar

que passo a me sentir contente.

Ninguém terá o sentimento

que nós dois sentimos.

E depois do amor, ô, ô,ô,ô,

o prazer com que sorrimos!

O desejo que nos faz queimar

é chama que não se apaga.

É vontade que nos faz brincar

de vai e vem, mas, nunca larga.

O nosso amor só nos faz cometer

loucuras,

mas, bem sabemos

que, chorando ou rindo,

o tempo vai passar.

É um presente

este bem querer

que nos faz cantar

e que nem o tempo

pode apagar.

Só podemos lamentar

que não haverá mais de mil fevereiros,

ou qualquer que seja o mês,

em que possamos estar vivos

para mais amar

como se fosse sempre igual, 

como se fosse a primeira vez.

Ilustração: https://open.spotify.com/.

.

 

Uma poesia de Diego Medrano

 

El borracho solitario imagina

mil cisnes azules

Diego Medrano

                                                         Cada ser es un himno destruido.

                                                           Emile Cioran

Hoy callas e imaginas mil cisnes azules

donde la podredumbre crece como araña

y los vinos son malos, callas e imaginas

el azul turbio como la paz imprescindible

entre la guerra hecha albañal de hielo.

Callas para leer mal las alcantarillas

y descifrar los vasos de tubo sin joyas.

Callas, investigas cuerpos en portales

que allí te aguardan como cadáveres solos

y pueda darse forma entonces con las manos

a un gigantesco muñeco de nieve sucia.

La ecuación vil de este tiempo de penurias:

intentar lo difícil donde antes lo fácil

era lo que llevaba a amar sin ningún preámbulo.

O bêbado solitário imagina

mil cisnes azuis

O BÊBADO SOLITÁRIO IMAGINA

MIL CISNES AZUIS

                             Cada ser é um hino destruído.

                             Emile Cioran

Hoje você se cala e imagina mil cisnes azuis

onde a podridão cresce como uma aranha

e os vinhos são ruins, calas e imaginas

o azul turvado como a paz essencial

entre a guerra feita esgoto de gelo.

Calas para interpretar mal os esgotos

e decifrar os óculos tubulares sem joias.

Calas e investigas corpos em portais

que ali te aguardam como cadáveres solitários

e se pode dar forma então com as mãos

a um gigantesco boneco de neve suja.

A equação vil deste tempo de penúrias:

tentar o difícil antes do fácil

era o que levava a amar sem nenhum preâmbulo.

O bêbado solitário imagina

mil cisnes azuis.

Ilustração: Shopee.

Uma poesia de Eugenio Montale

 


MIA VITA

Eugenio Montale

Mia vita, a te non chiedo lineamenti

fissi, volti plausibili o possessi.

Nel tuo giro inquieto ormai lo stesso

sapore han miele e assenzio.

 

Il cuore che ogni moto tiene a vile

raro è squassato da trasalimenti.

Così suona talvolta nel silenzio

della campagna un colpo di fucile.

MINHA VIDA

Minha vida, não te peço planos

fixos, rostos, plausibilidade ou posses.

No teu giro inquieto agora o mesmo

sabor eles têm de mel e absinto.

 

O coração que cada mover tende ao vil

raro é afetado por pressentimentos.

Quase, como, às vezes, soa no silêncio

da campanha um tiro de fuzil.

Ilustração: Obvious Mag.